Aquele que procura faíscas...

domingo, 10 de abril de 2011

Recomeço

Dividíamos cama e sonhos. E fui chamada a escrever seu epitáfio. No momento de transformar em palavras o homem que tão bem conheci, fiz uma viagem secreta aos anos findos de amiúde convivência. Era preciso ameaçá-lo para ser tratada com decência. E o silêncio seguia por dias. Eu, chorando miúdo e enfiando bilhetes por debaixo da porta. Ele, entrando e saindo colado ao telefone celular, transbordando indiferença.

E quando finalmente tínhamos coragem de priorizar o amor, a conversa vinha carregada de autoritarismo. “Essa é a vida que eu quero ter”, afirmava Pedro com veemência. “Não me divorciei para ter uma vida normal.” E, no entanto, se negava a ser feliz, enchendo a tão escolhida vida de agora com a mesma infelicidade de outrora. Como se o sentimento de insatisfação lhe fosse necessário para continuar no controle.

Há muito tempo atrás Pedro casara-se com a insatisfação, e não havia jeito de abandoná-la mesmo trocando de mulher, de vida, de casa. A insatisfação vinha como a certeza da morte e lhe fazia infeliz em qualquer circunstância, a menos que se entorpecesse. E assim estava fadado a passar o resto de sua vida. Tendo um relacionamento íntimo e fiel com a insatisfação e com o antídoto para fazer as noites mais felizes que os dias.

Mas tudo não passava de um paliativo, e a alegria esfuziante da mulher amada o bombardeava por dentro e lhe rasgava a esportiva. De onde vinha tanto brilho, mesmo na consciência da derrota? Seremos todos derrotados pelo desconhecido, talvez amanhã mesmo. De onde viria aquela luz, aquela faísca invejável de otimismo, que ao mesmo tempo em que era sugada e absorvida por ele para seguir adiante; era banalizada e negada como o sentimento dos medíocres?

E quando o fardo se tornava pesado demais e a vida sem graça demais, fazíamos as pazes. Ele abria os braços e deixava que eu o enchesse de amor e segurança. Planejávamos viagens regadas a fantasias, mas logo adiante a sombra da insatisfação acenava cínica e estonteante, lembrando ao que era doce que aquilo não duraria muito. E o que estava delicioso e leve acabava não durando o que merecia, pois a sombra tomava conta de tudo com uma força imbatível e virava um desastre natural... Acabando com tudo o que era colorido pela frente...

Para a seleção da Oficina Compartilhada

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